segunda-feira, 17 de setembro de 2012

OS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DA NOVA REPÚBLICA: A UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS E A CONQUISTA DA DEMOCRACIA (1985-2002)



OS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DA NOVA REPÚBLICA: A UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS E A CONQUISTA DA DEMOCRACIA (1985-2002)

Talvez não seja exagerado afirmar que, no decorrer da segunda metade dos anos 1980, o Brasil tenha realizado a sua transição para uma autêntica “Era dos Direitos”. Isso não apenas porque começamos a deixar para trás todo um passado marcado pela existência de inúmeros regimes de caráter ditatorial no plano político, mas também devido ao fato de que os direitos que começavam a ser conquistados passaram a ser reconhecidos de uma maneira universal, tanto nos campos civil, político e social quanto nos níveis individual e coletivo.
Marco inquestionável de tal passagem, a Constituição Federal de 1988 acabou por se constituir na pedra fundamental para a construção de um Estado Democrático de Direito também aberto aos desejos mais profundos presentes na nossa sociedade de edificação de uma nação igualitária em termos sociais e econômicos.
Dito de outra maneira, com a Constituição de 1988, foram abertas as portas legais para que, no Brasil, fosse efetuada a passagem de um “Estado liberal democrático” para um “Estado social-democrático”, que não nega, mas incorpora, o patrimônio universal legado pelo primeiro no que diz respeito à defesa e a garantia das liberdades individuais.
Chamada de “Constituição cidadã”, a nova Carta Magna representa uma referência legal indubitável para a luta em torno da afirmação histórica dos direitos humanos em nosso país, muito em função do fato de ter tra­zido consigo os princípios mais progressistas das tradições políticas liberal-democrática (o pluralismo político, a separação dos poderes do Estado e a representação eleitoral) e social-democrática (participação e combate às desigualdades sociais e regionais), sem desprezar as demandas de caráter multifacetado apresentadas pelos chamados novos movimentos sociais, ou seja, a defesa do bem comum no respeito à diversidade de origem, raça, sexo, cor, idade etc.
Entretanto, se no plano jurídico-formal o Brasil dá um verdadeiro salto de qualidade no que diz respeito à defesa e garantia dos direitos humanos, alguns obstáculos começam a ser erguidos para a sua efetivação no campo prático, isto é, para a sua aplicação na realidade social concreta, pois, na contramão de tudo aquilo arduamente conquistado em termos constitu­cionais, começa a chegar ao país no início dos anos 1990 um conjunto de idéias que advogavam a redução dos gastos sociais do Estado, idéias estas já colocadas em prática, desde uma década antes, na Inglaterra de Margaret Thatcher e nos Estados Unidos da América de Ronald Reagan.
Assim, sobre um capitalismo dependente, enraizado historicamente na tradição ibérica patrimonialista, caracterizada pela constante utilização da coisa pública para a realização de interesses privados, incide o receituário imposto por um conjunto de fórmulas econômicas que haviam entrado em crise no final do século xix. Um ideário que se fundamenta no pressu­posto central de que cabe ao mercado, um mercado livre das ingerências dos poderes públicos, o papel crucial de gestão da economia, o que traz como corolário a diminuição drástica das funções socioeconômicas desem­penhadas pelo Estado.
Será, pois, dentro de um contexto definido pela tensão existente entre um “Brasil legal” orientado pela avançada Constituição de 1988 e um “Brasil real” condicionado pelo impacto das fórmulas econômicas defensoras do Estado mínimo sobre um capitalismo de natureza patrimonialista que o nosso país chegará ao final do século xx tendo o desafio de reduzir os ele­vados níveis de desigualdade social existentes.
De outra parte, não será, por simples coincidência histórica que, junto à reprodução dos índices da desigualdade social, crescerá de forma verti­ginosa entre nós o fenômeno da violência urbana. Mesmo que não exista uma relação de causa e efeito entre desigualdade social e violência urbana, parece ser inquestionável que a primeira cria um terreno propício para a reprodução incessante da segunda, constituindo-se numa sua fonte permanente de alimentação.
No entanto, não há como não se visualizar nas brechas da tensão entre “Brasil legal” e “Brasil real” a emergência de inúmeros movimentos sociais organizados em função de um profundo desejo de luta por justiça, o que deve ser visto como uma reação social alternativa em relação à resposta dada à desigualdade social por meio das inúmeras formas de violência urbana.
A exemplificar essa necessária reação social, podem-se citar os mo­vimentos de negros e mulheres, ou de defensores do meio ambiente, ou ainda de outros agrupamentos sociais excluídos da nossa sociedade, como homossexuais, indígenas, pessoas com deficiência e a enorme gama de “sem-alguma-coisa” que se organizou na trilha aberta pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (mst).
Ademais, no bojo dessa rica movimentação social, é que devem ser percebidas as sucessivas conquistas obtidas no plano legal, por meio da aprovação de uma série de leis orgânicas e complementares (a exemplo da Lei Orgânica da Saúde) voltada para a diminuição do fosso responsável pela criação de uma sociedade apartada como a nossa.
Da mesma forma, seria possível localizar junto à crescente movimen­tação social levada a cabo no período a projeção de personagens como Leonardo Boff, Chico Mendes e Herbert de Souza, o Betinho, como expressões de um Brasil novo, visceralmente identificado com as camadas subalternas da sociedade e com o projeto de democratização do poder no país “a partir de baixo”.
No decorrer desses anos, este Brasil novo depositaria uma boa parte das suas expectativas no desejo de eleger o ex-metalúrgico Luiz Inácio da Silva, o Lula, para a presidência da República, dando forma a um projeto de caráter democrático-popular que fosse diverso não apenas em relação a tudo aquilo denunciado nas páginas do livro Brasil: nunca mais, mas também frente à idéia de transição “pelo alto” sintetizada na liderança do ex-governador de Minas Gerais eleito presidente da República no colégio eleitoral, no ano de 1985, Tancredo Neves.
Por fim, caberia apenas dizer que, se no plano econômico, os anos 1980 foram uma “década perdida”, o mesmo não pode ser dito em relação aos movimentos sociais, já que as lutas empreendidas por parcelas não des­prezíveis da sociedade civil brasileira no período representaram uma clara opção por um projeto de nação comprometido com os direitos humanos - o que fica claro na leitura dos dois Programas Nacionais de Direitos Huma­nos elaborados no transcorrer dos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Texto retirado do livro: DIREITOS HUMANOS NO BRASIL; MONDAINI, Marco; 2009; pgs. 97-99.

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