OS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DA NOVA REPÚBLICA: A
UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS E A CONQUISTA DA DEMOCRACIA (1985-2002)
Talvez não seja
exagerado afirmar que, no decorrer da segunda metade dos anos 1980, o Brasil
tenha realizado a sua transição para uma autêntica “Era dos Direitos”. Isso não
apenas porque começamos a deixar para trás todo um passado marcado pela
existência de inúmeros regimes de caráter ditatorial no plano político, mas
também devido ao fato de que os direitos que começavam a ser conquistados
passaram a ser reconhecidos de uma maneira universal, tanto nos campos civil,
político e social quanto nos níveis individual e coletivo.
Marco inquestionável
de tal passagem, a Constituição Federal de 1988 acabou por se constituir na
pedra fundamental para a construção de um Estado Democrático de Direito também
aberto aos desejos mais profundos presentes na nossa sociedade de edificação de
uma nação igualitária em termos sociais e econômicos.
Dito de outra maneira,
com a Constituição de 1988, foram abertas as portas legais para que, no Brasil,
fosse efetuada a passagem de um “Estado liberal democrático” para um “Estado social-democrático”,
que não nega, mas incorpora, o patrimônio universal legado pelo primeiro no que
diz respeito à defesa e a garantia das liberdades individuais.
Chamada de “Constituição cidadã”, a nova Carta Magna
representa uma referência legal indubitável para a luta em torno da afirmação
histórica dos direitos humanos em nosso país, muito em função do fato de ter
trazido consigo os princípios mais progressistas das tradições políticas
liberal-democrática (o pluralismo político, a separação dos poderes do Estado e
a representação eleitoral) e social-democrática (participação e combate às
desigualdades sociais e regionais), sem desprezar as demandas de caráter
multifacetado apresentadas pelos chamados novos movimentos sociais, ou seja, a
defesa do bem comum no respeito à diversidade de origem, raça, sexo, cor, idade
etc.
Entretanto, se no plano jurídico-formal o Brasil dá um
verdadeiro salto de qualidade no que diz respeito à defesa e garantia dos
direitos humanos, alguns obstáculos começam a ser erguidos para a sua
efetivação no campo prático, isto é, para a sua aplicação na realidade social
concreta, pois, na contramão de tudo aquilo arduamente conquistado em termos
constitucionais, começa a chegar ao país no início dos anos 1990 um conjunto
de idéias que advogavam a redução dos gastos sociais do Estado, idéias estas já
colocadas em prática, desde uma década antes, na Inglaterra de Margaret
Thatcher e nos Estados Unidos da América de Ronald Reagan.
Assim, sobre um capitalismo dependente, enraizado historicamente
na tradição ibérica patrimonialista, caracterizada pela constante utilização da
coisa pública para a realização de interesses privados, incide o receituário
imposto por um conjunto de fórmulas econômicas que haviam entrado em crise no
final do século xix. Um ideário que se fundamenta no pressuposto central de
que cabe ao mercado, um mercado livre das ingerências dos poderes públicos, o
papel crucial de gestão da economia, o que traz como corolário a diminuição
drástica das funções socioeconômicas desempenhadas pelo Estado.
Será, pois, dentro de um contexto definido pela tensão
existente entre um “Brasil legal” orientado pela avançada Constituição de 1988
e um “Brasil real” condicionado pelo impacto das fórmulas econômicas defensoras
do Estado mínimo sobre um capitalismo de natureza patrimonialista que o nosso
país chegará ao final do século xx tendo o desafio de reduzir os elevados
níveis de desigualdade social existentes.
De outra parte, não será, por simples coincidência
histórica que, junto à reprodução dos índices da desigualdade social, crescerá
de forma vertiginosa entre nós o fenômeno da violência urbana. Mesmo que não
exista uma relação de causa e efeito entre desigualdade social e violência
urbana, parece ser inquestionável que a primeira cria um terreno propício para
a reprodução incessante da segunda, constituindo-se numa sua fonte permanente
de alimentação.
No entanto, não há
como não se visualizar nas brechas da tensão entre “Brasil legal” e “Brasil
real” a emergência de inúmeros movimentos sociais
organizados em função de um profundo desejo
de luta por justiça, o que deve ser visto como uma reação social alternativa em
relação à resposta dada à desigualdade social por meio das inúmeras
formas de violência
urbana.
A exemplificar essa
necessária reação social, podem-se citar os movimentos de negros e mulheres,
ou de defensores do meio ambiente, ou ainda de outros agrupamentos sociais
excluídos da nossa sociedade, como homossexuais, indígenas, pessoas com
deficiência e a enorme gama de “sem-alguma-coisa” que se organizou na trilha
aberta pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (mst).
Ademais, no bojo dessa
rica movimentação social, é que devem ser percebidas as sucessivas conquistas
obtidas no plano legal, por meio da aprovação de uma série de leis orgânicas e
complementares (a exemplo da Lei Orgânica da Saúde) voltada para a diminuição
do fosso responsável pela criação de uma sociedade apartada como a nossa.
Da mesma forma, seria
possível localizar junto à crescente movimentação social levada a cabo no
período a projeção de personagens como Leonardo Boff, Chico Mendes e Herbert de
Souza, o Betinho, como expressões de um Brasil novo, visceralmente identificado
com as camadas subalternas da sociedade e com o projeto de democratização do
poder no país “a partir de baixo”.
No decorrer desses
anos, este Brasil novo depositaria uma boa parte das suas expectativas no
desejo de eleger o ex-metalúrgico Luiz Inácio da Silva, o Lula, para a
presidência da República, dando forma a um projeto de caráter
democrático-popular que fosse diverso não apenas em relação a tudo aquilo
denunciado nas páginas do livro Brasil: nunca mais,
mas também frente à idéia de transição “pelo alto” sintetizada na liderança do
ex-governador de Minas Gerais eleito presidente da República no colégio
eleitoral, no ano de 1985, Tancredo Neves.
Por fim, caberia
apenas dizer que, se no plano econômico, os anos 1980 foram uma “década
perdida”, o mesmo não pode ser dito em relação aos movimentos sociais, já que
as lutas empreendidas por parcelas não desprezíveis da sociedade civil
brasileira no período representaram uma clara opção por um projeto de nação
comprometido com os direitos humanos - o que fica claro na leitura dos dois
Programas Nacionais de Direitos Humanos elaborados no transcorrer dos dois
mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Texto retirado do livro: DIREITOS HUMANOS NO BRASIL; MONDAINI, Marco; 2009; pgs. 97-99.
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